quinta-feira, 29 de maio de 2008

Ode ao olho




Não é por nada, não
É mais porque gosto de rascunhar papel
É porque quando escrevo assim, ao léu
Dá vontade de falar do céu
Dá ganas de contar do breu.
Mas hoje é só esse olho seu
Que, ai meu deus
É de um castanho de desatino
É um olho assim, de menino
De taurino
Com ascendente em leão.
É olho que, quando a luz é certeira
Tem luxos de mudar coloração
E de roubar minha cor, minha ação
Em espantamento de criança
Em rendição de inseto preso em âmbar
Pontinho preto na sua íris caramelada
Imóvel, exposto em pose atrapalhada
A alma entregue à sua salvação.
E seus cílios agora, então?
São todos feitos de matéria-carinho
Curvadinhos
Ponta de asa de passarinho
Flor de dente-de-leão.
Se eu soprar seu olho, menino
Espalho seus cílios no vento?
E o que acontece na hora
Que eles tocarem o chão?
Será que você vai nascendo
À beira do caminho que ando
Pra, seguido, eu ir te encontrando
E poder segurar sua mão?
Ah, me desculpe, menino
Essa divagação sem tamanho
Mas explico esse súbito assanho
Confesso que há, sim, razão:
É que quando eu fecho o olho
(que estranho)
Nem azul nem breu
É castanho
Que tinge o avesso das pálpebras
E me preenche a visão.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Prece de Maria Cândida



Ó, meu pai
Tira de mim essa candura
Nem precisa tirar tudo, aliás:
Some só com esse can
Troque aí por cã
Cadela
Quero ser dura
Cã dura
Cadela difícil
Tem mais graça, meu pai.
Deixa, ao invés, eu ser coisa que queima
(queimadura)
Ser coisa que ata
(atadura)
Coisa que morde
(mordedura)
E, por favor, coisa que per
(perdura)
Não me largue sozinha
No meio dessa ternura
Jura
Com a mão no peito.
É que eu ando mal
Ando muito enjoadinha
Desse defeito
De fábrica.
Enjoada, nada
Ando puta.
Chega de açúcar
Quero páprica
Vermelha
É muito mel, meu pai, muito mel
Quero a picada da abelha.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

(M)ar



Mar
Começa com eme
De molhado
De maravilhoso
De minha-santa-iemanjá
Por propósitos semânticos óbvios.
Tudo fantasia
Explico já:
No fundo é ar
De tez verde, azul, fria
E de alma difícil
Que ninguém aprendeu a respirar.
Ele se sabe essencial, mas se disfarça
Em água não potável, não lavável,
Por vezes nada amável
Pouco afável
Ao surfe dos meninos, aos castelinhos à beira-mar
À mocinha distraída na cadeira listrada retrátil,
Que toma um belo banho, sem esperar.
É medo dele, desse ar indomável
É orgulho mesmo
Vontade de guardar segredo
De ser impermeável
Sem o ser.
É querer se esconder,
De tanto aparecer.

segunda-feira, 5 de maio de 2008

Fuso Horário




A gente bem que tenta
A gente até inventa
Mas não consegue caber no tempo
A contento.
Ficam sempre umas arestas
Umas sobras de sentimento
Fica um querer de mais vento
De ponteiro andando lento
De esticar as horas
Feito fuso mudando constantemente
Feito semente
Que enrola de preguiça de brotar.
Quando voltar
Chega de nossas coisas cheias de dobras
Pra caber em espaço pouco
Vamos ali tirar a prova
De que o tempo pode parar:
É só a gente sair seis pras sete
E ir indo com qualquer vento oeste
E garanto que hora nenhuma
Vai inventar de passar.
E se alguém decidir ligar, preocupado
No meio da nossa décima segunda noitinha
É só acalmar o chato
O pobre desavisado:
“Aqui é de Tóquio e ainda são sete.
Aliás, seis e cinqüenta e quatro.”