quarta-feira, 30 de julho de 2008

Particularidades de Helena




Atirou o calhamaço de folhas rabiscadas à parede, irritada. Sofria de uma tristeza tão desgraçada, tão mal-feita e rascunhada, e negada, que às vezes se sentia feliz – profundamente. Por isso não padecia com beleza, nem era alegre de verdade. Logo perdeu a visão do vermelho. Quando o inverno chegou e os morangos estavam graúdos e acinzentados, sangrou um filete negro pelo nariz e nunca mais rimou nada.





quinta-feira, 24 de julho de 2008

Otoño





Cheguei a Santiago do Chile em época cor de pêssego e terracota, fugindo à tendência turística de estações de esqui, um frio de doer, e possíveis músculos contundidos. Queria o anonimato de uma baixa temporada, em que passaria despercebido entre os transeuntes, me misturando à vida local. Escolhi o Outono. E o que encontrei foi uma cidade coberta de um glamour tão despretensioso, que me causou assim uma comoção muito discreta que ninguém chegou a notar. É que a cidade me pareceu uma São Paulo muito comum, com seus arranha-céus e trânsito caótico. Mas os parques, ah, os parques. Enquanto que à noite eu me deleitava com a refinada gastronomia santiaguina, com seus picorocos e salmões a ótimos preços, durante o dia meu tempo era dedicado a conhecer os parques espalhados por diversos pontos da cidade, realçando a estação como belas moças de vestidos acinturados de longas saias, colo moreno e perfume amadeirado.

Pois em um desses dias levantei-me bem cedo pra encontrar-me com minha favorita. Era domingo de manhã e eu caminhava pelo Parque Florestal, o El Diário pendendo de minha mão direita, enquanto um copo de café fumegava entre os dedos da outra mão. Que rico desayuno! – treinei, mentalmente, meu espanhol. Normalmente, aos domingos, gostava de misturar as notícias ao café como quem molha nele o pão com manteiga, ou adiciona torrões de açúcar. Ao fim da xícara – ou do caderno – sentia-me estranhamente saciado.

Com o tapete de folhas secas estalando sob meus pés, comecei a espiar as manchetes.



Bolsa bajó 1,14% y puso fin a racha de alzas

Um gole de café-café.



Velasco pidió actuar con prudencia frente a complejo escenario...


Mais um gole. E acabei fechando o periódico, aborrecido. Ainda era muito cedo e o silêncio pungente demais para leituras de jornal. O lugar era muito amplo, as folhas estalavam aqui e ali, e de repente me senti companhia maçante àquela moça esbelta de pele acobreada. Pouquíssimo galante. Decidi dedicar meu café à canela e ao caramelo dela, e fiquei tendo pensamentos de que espécie de gatilho do tempo amarelece as folhas e as leva todas ao chão. E chuva de outono, que parece chiar como água em lâmina de aço quente? Outono pra mim ganhou conotações de freio, fim e consciência, e aquela visão de folhas aos montes no chão de repente me caiu como confete em dia derradeiro de carnaval, naquela muito minha manhã vazia.

Freio, fim e consciência.

Quem conta a passagem de tempo em primaveras nada entende de uvas carmenére e amor. Meu coração são cinqüenta outonos muito bem sofridos, obrigado. E ele pulsa amarelo como o do poeta, de tanto no responder.










(para Cris. E a manhã é essa)


quinta-feira, 10 de julho de 2008

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Pequena Saga do Passarinho Mudo





Nasceu numa manhã de março – manhã cinza de chuva forte. O desespero de seus irmãos e a água caindo do céu daquele jeito ensurdecedor falavam mais alto que sua própria estupefação e aquela fome visceral de ter um pedaço do mundo preenchendo por dentro (que podia, sim, vir em forma de um nacozinho de minhoca, por favor). Mas como quem não chora não mama, veio minhoca, veio lagartinha e o escambau, e nada de sobrar um pedacinho que fosse pra saciar aquela fome, que parecia ser maior que sua pancinha pelada de filhote. Foi só quando os outros dois pequeninos se acalmaram, assonsados com o banquete, que ele conseguiu se fazer notar. Ora, reparou muito bem reparado que era tão feio e cabeçudo quanto os outros dois, e não entendeu o porquê da exclusão – palavra humana que não conhecia, mas que sentia fazer tremer seus cambitinhos. Daí abriu bastante o bico e aproveitou o silêncio e a coincidente estiagem pra gritar bem alto por uma minhoca muito da gorda, e que fosse sem demora:

“ ”

E foi isso: um fiapo de ar que nem vestígio algum de som tinha. O passarinho ainda continuou aquela pantomima maluca, e os genitores, embasbacados, entenderam tudo:

“Josefina, o piá é mudo feito uma porta.”

“Mudo. E agora, Astolfo?”

“E agora?”, devolveu Astolfo.

E agora? E agora, minha gente, que o passarinho mudo fez a única coisa que poderia fazer naquele momento: cruzou suas asinhas diminutas numa bela banana para seu Astolfo e dona Josefina e catou o primeiro besouro cascudo que achou dando sopa na borda do ninho, enfiando-o bico adentro. E lá se foi, arranhando, relutante que só, seu primeiro pedaço de mundo goela abaixo.

E por muitas vezes ainda o mundo seria bem difícil de engolir. Afinal, quais são as perspectivas de um passarinho incapaz de cantar? De embalar com suas canções namoradinhos num fim de tarde, de provocar o assovio do senhor fumando um cachimbo na varanda?

Vá saber. O fato é que, num dia qualquer, pegaram o passarinho numa arataca. Foi o caos. Era um casal de velhos. Colocaram o bicho numa gaiola e ficaram olhando. A velha o achou tão bonito, daquela cor amarelo-manga, achou muito lindo mesmo. O velho foi logo dizendo que era um canário belga, que canário cantava que era uma beleza, e que canário belga, então, era uma coisa assim de doido, devia ser porque tinha vindo das europas.

Ficaram olhando aquela alteza de além-mar.
E o passarinho lá, mudinho da silva.

“Ô, Maria, o bicho tá assustado. Vamos dar um tempo pra ele se acostumar que daqui a pouco ele canta, cê vai ver.”

E o tempo virou um dia, dois, e nada. A velha já estava ficando exasperada. Então quer dizer que aquele bicho folgado comia, bebia e fazia sujeira o dia inteiro, pra não soltar nem uma notinha que fosse?

“Geraldo, você que limpe essa gaiola! Assistencialismo, comigo, não!”

O velho, esperançoso e paciente, aceitou a empreitada. E até começou a fazer umas pesquisas, pra descobrir um jeito de desencantar aquela peste de canarinho. Um dia descobriu algo interessante: leu em algum lugar que música clássica era um negócio ótimo pra inspirar canto de passarinho. Não perdeu tempo. Juntou a nata daquele pessoal – Beethoven, Mozart, Bach e tal, e começou a tocar aquilo o dia inteiro.

De início parecia que algo havia despertado no canarinho. Ele ouvia os sons com tanta atenção, que seu Geraldo tinha certeza que ele começaria a cantar a qualquer momento. E, realmente, logo toda aquela música erudita surtiu resultado. Manhãzinha de setembro, corre seu Geraldo à cozinha acudir dona Maria, pois tinha ouvido um barulhão de caneca se espatifando. Chegando lá, a cena tétrica: aquela bagunça de café com leite e cacos pelo chão, e a velha com as mãos no rosto e os olhos esbugalhados em direção à gaiola.

Ao som da Sinfonia n. 3 de Beethoven, o passarinho brandia suas asas no ar energicamente, olhinhos fechados e expressão grave, como um regente apaixonado à frente de uma primorosa orquestra invisível. Mas sua carreira como maestro naquela casa foi curta. Apesar dos protestos do marido, dona Maria escancarou a portinhola e sacudiu a gaiola na janela.

“Xô, passarinho caduco.”

Bem que o canarinho tentou dividir sua mais nova e maravilhosa descoberta com os outros pássaros. Pôr-do-sol, quando todos voltavam em revoada, ficava por perto. Num lugar visível, enquanto os outros cantavam, ele se punha a sacudir as asinhas, como se pudesse fazer daquela desordem de pios uma bela sonata de ocaso... Mas qual o quê! O bem-te-vi continuava com aquela história de ter visto não sei quem, e o sabiá só sabia mesmo assobiar.

Sobrou até pro galo da vizinhança. Canarinho cismou que ele era um talentoso tenor desperdiçando dom com aquela sina de despertador. O galo não entendeu e ficou por isso mesmo.

Mas, mesmo assim, o canarinho mudo viveu pra sempre cheio de música. Ele todo era música pura. Brincava de reger o som do rio, as folhas balançando e os passos das crianças. E quando cansava de reger os sons do mundo, se punha num fio bem escolhido e ficava lá por horas em pose de clave de sol. E todo mundo sabe que a tal clave mantém o sol no lugar. Ele gostava de achar que mantinha o Sol no lugar. Era tarefa nobre, era um segredo entre ele e o Universo.