segunda-feira, 29 de setembro de 2008

L'amour


Saio pela porta com o olhar dele sobre minhas costas. Saio calada, mas esse meu amor mais sem conserto do mundo fica sussurrando au revoir por sobre meus ombros. E pede pra eu voltar sempre.

Sil vous plait

Ele diz, educadinho.

Faz bico, esnoba o vernáculo, traga um cigarro na ponta da piteira envernizada, e, com classe, espera a vez.

Sinto dó.

É que é um amor boboca, de cinema francês.
Coitado, não sabe que só funciona em preto e branco, em tela plana, e que dura um rolo de duas horas.

Com boa vontade, três.

Tadinho, não sabe nada da vida. Não sabe que não cabe àquele homem, que é amor só de freguês, de pipoca, e solução apenas pra dia tedioso de chuva fina.

Esse amor vai perder a pose, cair do salto e ralar o joelho.

Nesse dia eu grito de longe que avisei, ó, teimoso! Talvez volte só pra apagar o cigarro, catar os cacos da piteira, o salto quebrado, soprar o machucado do pobre diabo.

Vai ver até fico (ora, se me posso com olhinho marejado), lhe calço uns sapatos baixos, lhe tasco um curativo, lhe tiro os vícios e meto-lhe, ao invés, juízo, aos bons bocados.

E em bom português falado.




(2007 / 2008)

quarta-feira, 17 de setembro de 2008

Dilema de uma Cor



O negócio, menino, é que eu sempre me achei morena, assim, do tipo brasileira nascida num dia de calor franco, num meio-dia de arroz e feijão e jarra de suco de manga dum almoço interrompido pra me verem nascer. Sempre me achei morena e brejeira feito as brasileiras mesmo são, e sempre fui menina de voltar dos janeiros com marcas de biquini: é que tenho pele que gosta de sol, e agradece dourada, responde cheia de um certo orgulho-jambo. Só que essa morenice que lhe cabe é um absurdo, viu, afronta enorme à palidez dessas caras comuns de inverno. Menino, que atrevimento, eu descobri que você é todo por igual feito de uma cor que – sei lá – se come ou se bebe com uma cara boa de provar sobremesa de domingo. Por que é que você não desbota em tempo desse, de chuva? Eu desboto. E sua cor abraçando a minha me virava inteira num tom de lua nova, você me brilhava no escuro acendendo em mim um milhão de pontinhos de luz. Sua morenice íntegra me fazia saber-me melhor e me fascinava em mistérios. Como no dia que dormi sobre seu peito e sonhei que seu torso na verdade era feito de terra, e que o que pulsava sob meus ouvidos não era coração, não, mas semente se preparando pra brotar. Acordei pensando sobre o que poderia nascer assim de dentro de você, no meio da madrugada. Pensei em pé de cacau, ou abiu, e tal.

Mas, meu deus, pois que agorinha mesmo chove tanto, e fico só e incolor, à mercê. De vez em quando acordo à noite e, alarmada, perco a visão de uma mão, ou pé, por uns três segundos. Minha cor anda em crise desde que soube sua ausência, de tão mal-acostumada que estava. Crise de identidade. Já prometi a ela o sol inteiro de janeiro, e que pare já de choramingar. Enquanto isso, espero que ela não me apronte e eu não suma. Ou que eu lhe encontre numa esquina prum abraçozinho de salvação. Não é por mim, você sabe. Ando bem, ando tão bem... É só pr’essa pobre cor fora do tom.

segunda-feira, 8 de setembro de 2008

O Cômodo


Havia ali uma chave, pra fechadura de uma porta geniosa que não deixava a chave virar enquanto ela não estivesse nem muito pra lá, nem muito pra cá, mas em flutuante equilíbrio . E a porta pertencia a um quarto sem uso em que jazia apenas uma cômoda de madeira escura e rústica com gavetas vazias. A moça havia se mudado há pouco tempo para aquela casa, que se mostrava maior do que ela realmente precisava. Sozinha, tomara apenas um dos quartos, adjacente ao primeiro, em que couberam todas as suas poucas coisas, com exceção da velha cômoda herdada da avó (mais por destoar do resto da mobília marfim que por falta de espaço).

Então, ali ficava o quarto, com a cômoda no âmago, como um filho na barriga, encerrado no mistério do porvir. A cômoda e o quarto causavam-lhe uma sensação de iminência e solidão tão aguda, que a moça sempre mantinha a porta fechada. Essa última pelo óbvio da cômoda ali, tão disponível e desacompanhada. E a primeira porque não era possível a solidão de uma cômoda num quarto. Era sacrílego, e sempre que ela ali entrava, pra desfazer o trabalho árduo da poeira, que levava dias pra se juntar em uma fina camada sobre o chão (e a cômoda), achava que algo estava pra acontecer, e logo. E saía com a urgência e a tez pálida de quem comete um crime.

Até o dia em que a moça foi iluminada por uma simplicidade que lhe queimou as maçãs do rosto. Noitinha de terça-feira, tirou os saltos na entrada do prédio, pra que pudesse correr pelas escadas acima. Tinha umas frases na cabeça, e não podia perdê-las de nenhum jeito. Girou a chave na fechadura com as mãos trêmulas, e buscou o bloco e a caneta que sempre ficavam ao lado do telefone.

“Hoje plantei três mudinhas de quaresmeiras numa terra boa assim da cor do seu olho. Fevereiro que vem já vão dar flor.”

Dobrou o papel em quatro e dirigiu-se para o cômodo vazio, que, uma vez aberto, parecia muito mais compacto agora que se enchera de propósito. Abriu a primeira gaveta da cômoda e pousou o papel sobre a madeira. Quando fechou a porta atrás de si, transbordava de um corretíssimo sentimento de satisfação, como se o mundo tivesse retomado uma ordem obrigatória, que ela houvera desorganizado ao criar aquele sem-sentido para o quarto.

Mas agora não havia mais angústia, pois que o sentido estava bem ali: era um quarto de memórias, afinal. Agora ela não precisava ter medo de esquecer nada, que era só trancar tudo ali e pronto. É que não contei ainda, mas a moça morria de um medo de esquecer as coisas. Mas não era o tipo de esquecer daqueles de deixar molho de chave em mesa de padaria, ou sombrinha em banco de ônibus. Era uma desmemória que ela julgava muito mais séria, como esquecer o barulho da chuva sobre o toldo de ponto de ônibus num certo dia de verão, ou aquela frase que o namorado havia dito tão à toa com um sanduíche pelo meio nas mãos.

Depois de pouco tempo as três gavetas da cômoda estavam abarrotadas. A primeira de papéis escritos:

“Mais ou menos é sempre menos, filha.” – disse a velha na fila, filosofando a esmo.

“Como faz sorvete céu-azul, quando o dia tá assim?” – perguntou ao sorveteiro o menino de quatro anos, na fatalidade de um dia nublado.

“Separo um pouco pra você, todos os dias, sem azeitonas” – disse a moça do refeitório.


A segunda era de fotos. A do topo, por exemplo, tinha muita gente na calçada, em volta de um saquinho de pipoca esparramado, feito corpo caído do oitavo andar. Pelas expressões, quem mais sofria era uma menina de uns cinco anos, viúva.

A terceira, de CD’s etiquetados. RISADAS, ONDAS, ELE RESPIRANDO ENQUANTO DORME, etc.

Daí vieram as caixas. Muitas, pelo assoalho: um brinco de miçanga verde encontrado no chão do metrô (“de uma garota que saiu de um sebo com Kundera sob o braço”), uma chave cor de cobre, laço de fita encarnado (“saída de uma escola – festa de São João”), carrinho de brinquedo sem rodas traseiras, um chinelo verde água número 33, uma brita de construção (“obra de casal simpático, provavelmente recém casados”), pingente meio quebrado em forma de gota.

Mas ainda havia o medo. Era tanta coisa na vida pra entregar aos caprichos duvidosos da memória humana. Pensou e pensou e teve uma idéia. Revirava esses pequenos tesouros quando ouviu as batidas na porta da frente. Era o namorado. O Jonas, Jonas das quaresmeiras em flor em fevereiro.

“Me ajuda com a cama”.

Jonas desmontou a cama e o pequeno armário de roupas. Montou de novo no outro quarto. Jonas levou televisão, filmes gravados, ajudou com todos os livros. Muito compreensivo, não questionava, apenas ouvia:

“Não posso esquecer essas histórias, Jonas. Sabe quando Mário fala que vai afundando o nariz pelos cabelos de Maria, e diz que é engraçado como a perfeição fixa a gente? Sabe?”

“Sei...” Jonas sem muita certeza.

“Então, imagina se me esqueço disso, não posso nunca não. Aqui fica tudo seguro, nunca esqueço.”

“Tou te entendendo.”

“Jonas...”

“Sim?”

“Sente ali na cama, vá? Queria te ver ali.”

Jonas sentou. Súbito, a moça saiu correndo, trancou a porta por fora. Dois breves segundos de silêncio e depois gritos de abre abre abre, agora, você está louca. Batidas na porta. Já estava arrependida, tentava girar a chave para abrir o quarto, mas Jonas, enfurecido, forçava para puxá-la, do lado de dentro do cômodo. A chave não girava, a moça chorava, Jonas gritava.

Até que o barulho tilintante e inevitável pôs fim ao caos: a chave partiu-se em duas. A moça olhou a metade que segurava entre os dedos. Do outro lado da fechadura congestionada, apenas silêncio incrédulo.

“Desculpe... amanhã bem cedo chamo um chaveiro” disse, numa súplica quase sem voz. A resposta veio dura, reta:

“Tudo bem.”

Não havia nada a fazer a não ser esperar. Com a alma arrasada, debruçou-se na janela, e, depois de tanto fitar o breu da noite acima, sentiu sono. Cochilando com as mãos sob o queixo, sonhou um sonho estranho onde tudo ganhava asas e saía voando pela janela do quarto ao lado. Jonas, com suas belas e longas asas cor de creme, liderava a comitiva. E lá se ia tudo atrás, até o último papelzinho com trejeitos de borboleta, do décimo andar de um prédio cinzento de São Paulo em direção à lua.

Acordou encolhida sobre o tapete na manhã seguinte, sem lembrar o próprio nome. Correu para o outro quarto. Esquecida também da idéia do chaveiro, e com uma força de desespero que desconhecia, deu três chutes no centro da porta e o interior do quarto se expôs com a violência de um soco de revide: janela escancarada, e nada além de uma longa pena planando pertinho do chão com a brisa da manhã.