sábado, 15 de dezembro de 2012

De Pães e Nenhuma Letra



Não ando escrevendo. Nem pouco, nem nada. Agora entendo que meu escrever constante de tempos passados pode ter sido, mais que mistérios do profundo da alma, coisa simples de mãos inquietas. Escrever também é a textura do papel e o jeito com que a tinta corre por ele. Deve correr fácil e abundante, deve manchar meus dedos, unhas até. Unhas, aliás, que sempre tive curtas. Porque cresciam lentas e frágeis, sim, mas também porque quando um pouco mais longas me atrapalhavam a sentir a pequenez das formigas de açúcar, perscrutar a geografia das pitangas. Muito com os dedos eu enxergava o mundo: fazia dormir as dormideiras, arrancava também as casquinhas da goiabeira minutos sem fim. Conversava com sulcos e saliências. O nariz de minha mãe, pequeno e delicado. O queixo redondo e as linhas do sorriso, um pouco mais profundas a cada ano. Entendi com os dedos que mamãe envelhecia, mais que com os olhos. Também assim entendi a turgidez de fruta de estação de meu corpo púbere. O espelho era uma confirmação plana, fotográfica. A verdade-matéria me turvava a vista, curvilínea e sumarenta.

O que quero dizer é que não quero escrever. Ando exacerbadamente sensorial, as palavras me esgotam, a linguística, a literatura. Me esgota o idioma estrangeiro, estoy agotada, je suis fatiguée. Me esgotam os pós-estruturalistas, eu quero respirar fora do texto um pouco. Assim: fazendo pães.

Já fizeram pães vocês alguma vez, senhores? Se não, devem fazê-lo. Mas façam-o com canto e dança, façam-o como se gerassem vida. Como se gestassem, como se parissem. Espalmem as mãos sobre a massa morna do pão como se ela fosse as costas suaves de um recém-nascido. Alterne com sová-la com lascívia, afundando dedos queredores. Divida a massa, leve ao tabuleiro cada porção para que descanse. Faça esse movimento com as mãos em concha, como se tivessem sete anos de idade e carregassem um punhado de água do mar, ou um passarinho. Cada pão que se vai abrindo como flor é único em suas reentrâncias e convexos.

Não tenho tempo para escrever, porque uso muito dele olhando os pães no forno. Os vinte e três minutos são exatos para o dourado perfeito, mas há que flagrar o instante preciso de pequenos milagres: um vinco que se alarga, o lentíssimo movimento de um pãozinho se expandido pra tocar o outro a seu lado. Alguns dias, exausta, durmo o sono pesado dos que constróem casas o dia inteiro. Entendo-os, entendo as bordadeiras, as catadoras de mangaba. Contemplo a poesia intrincada do mundo, poesia material: os nós de macramé, pilha de tijolos, vento no trigal. As fileiras mesmas de pães, versos de perfume quente e penetrante.

Não tenho escrito, enfim. E não é falta ideias. São as múltiplas querências, as mãos inquietas. Talvez seja um capricho de quem sempre passou muito tempo contemplando e descifrando as próprias mãos. Talvez seja apenas um escrever de outra maneira.





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Texto publicado na Cachoeiro Cult de dezembro/2012. 

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Etimologia




É com a extensão inteira da sua pele que eu quero que você aprenda as palavras, sentindo-as todas, como deve ser. Pego sua mão entre as minhas e lhe entrego a primeira. Escrevo na sua palma: borboleta - e a palavra lhe faz cócegas como se você deveras prendesse o bichinho na concha de suas mãos. Abra a mão e olhe com atenção: borboleta é palavra de pura descrição de voos vacilantes. Com o tempo lhe mostro como uma folha de outono ou pedaço de papel podem se chamar borboleta também. Por agora vou escrevendo chuva atrás da sua orelha. Você não pode ler porque quero somente que escute o barulho dela. Chuva começa com o barulho mesmo de água com vertigem, chiadeira de dígrafo que foi inventado exato para esses próprios ruídos: chuá, chaleira, cachoeira, choro. Imite comigo o barulho comprido dessas quedas d’água, o mesmo barulho de quando a gente pede silêncio com o indicador contra os lábios. Por isso as coisas da água vão bem com silêncio. Como o mar. O mar conversa conosco é quando há um tudo quieto em volta. Ele pulsa e se dilata feito coração, já viu? Coisa das marés e dos ventos. Por isso escrevo mar sobre seu peito. E lhe mostro como o erre se expande pela abertura desimpedida da boca, vai se espraiando horizontes sem fim. Coisa idêntica acontece com a palavra amor, ouça bem as infinitudes.

Por fim decido que quero suas pernas. Cubro sua pele branca com o nome das frutas que nascem de sementes acarinhadas pelas terras daqui. Vou dizendo pitanga, cacau, caju, cupuaçu, goiaba, maracujá, guaraná. Suas coxas se impregnando do cheiro de todas enquanto você repete os nomes. Mastigue as polpas, sorva todos os sucos. Conto-lhe duas coisas: a flor do maracujá só a mamangaba poliniza, único inseto desses ímpetos. E o guaraná dizem ter nascido dos olhos plantados de um curumim maué.

Depois silêncio. São as águas.